quarta-feira, 18 de maio de 2011

«Senhor Fernando, o patrão chamou-o. Disse-me, que subisse. Precisa de lhe falar.»
«O que quererá ele, Rosa?»
«Não faço a mínima ideia, mas pareceu-me bem-disposto.»
Era raro chamar-me ao gabinete. Quando queria transmitir-me algum recado ou dar-me conhecimento de algum problema, ou sobre alguma tarefa a realizar, com urgência, ou no dia seguinte…, ligava-me e falávamos pelo telefone ou descia ao escritório onde estou e dava as ordens que tinha a dar, tudo o que tinha a dizer, baseado em apontamentos tomados à pressa, numa folha A4, onde habitualmente se misturavam rabiscos com contas, memorandos, frases soltas, números de telefones, e-mail… O que quererá ele?
Depois de bater à porta, esperei que me mandasse entrar, mas ouvia-o falar alto, meio zangado. Não percebi com quem discutia, nem o porquê? Esperei que acabasse o telefonema, para voltar a medo, dar com os nós dos dedos na porta.
«Entra, Fernando! Já estavas, aí, há um bom bocado. Eu ouvir bater, mas estava numa conversação, que não dava para interromper, desculpa!»
Estava a preparar terrenos para me dizer alguma coisa. Mas fiquei confuso sem perceber o que viria em seguida, pois não era hábito, nem me chamar ao gabinete, nem ter aquela postura; justificar-se e pedir desculpa.
«Sei, que há algum descontentamento da tua parte, pelo facto de não teres sido este ano aumentado e como já verifiquei, isso repetiu-se outras vezes. Tendo em conta o excelente funcionário que és, a dedicação que tens demonstrado à empresa, saindo fora de horas e ainda quando é necessário, estás aqui ao fim-de-semana, para resolver assuntos urgentes, ou pôr em dia os documentos para a contabilidade, finanças…, sem que alguma vez tenhas levantado problemas ou arranjado uma justificação válida para que faltasses e eu te tivesse compensado materialmente por isso. Pensei e acho que tu és daqueles que veste a camisola e em quem se pode confiar.»
Fiquei estupefacto, sem saber o que dizer. Estava à espera de tudo, menos de um aumento salarial. Foi tanto o elogio, que esqueci de lhe perguntar quanto era a verba a mais, que me iria cair na conta, ao fim do mês.
Parecia que de repente tudo estava a mudar. A nuvem negra estava a desvanecer-se. Até o engenheiro andava diferente. Depois daquela vez, em que o enfrentei e lhe disse tudo o que me veio à cabeça, sem recear, ou primeiro pensado, antes de verbalizar, ele andou, ali uns dias, quase sem me dirigir a palavra, mal me falava, só o essencial, mas depois começou gradualmente a mudar a atitude e a ser mais cauteloso no trato e com a forma como se expressava, substituindo ordens por pedidos, finalizados com o respectivo; se faz favor. Todos os dias, estava, agora, logo de manhã cedo, antes dos restantes trabalhadores chegarem à obra, para organizar o serviço e depois das oito horas, quando já estivessem todos, dar as directrizes e definir as metas. Foram eles que me vieram dizer que o senhor engenheiro estava diferente, completamente mudado, que continuando exigente, mas tinha outra consideração pelos seus homens e tudo funcionava melhor, havia mais união e espírito de equipa. E felicitaram-me por isso, pois acham eles que aquela conversa deu os seus frutos, por eu ser um exemplo. «Ser exemplar dá estatuto!»
A Rosa, também, ter entrado para o escritório, foi uma grande ajuda e o serviço anda mais actualizado, sem que haja montanhas de papéis, acumulando-se, em cima das secretárias, por arquivar. Detesto arquivar, facturas, recibos, cartas… Perco imenso tempo. A Rosa é excelente! Tem tudo muito bem organizado. Ela domina bem o computador e surpreende-me com listagens variadas, que me facilitam muito a vida.
É uma boa miúda. Conversa muito comigo e fala-me muito dela.
Uma tarde de sexta-feira, depois de almoço, em que pouco havia para fazer, concentrei-me mais nas suas histórias, que com tanta graça, sabe contar, e lembrando-me de minha mãe, perguntei-lhe se tinha namorado. Olhou-me sem responder e corou. Fiquei atrapalhado, pois não deveria, se calhar ter feito tal pergunta. Não tenho que fazer perguntas sobre a vida privada de ninguém, ainda por cima, uma pessoa que trabalha no mesmo sítio que eu. Mas foi ela que me habitou às suas histórias de vida, falando-me de tudo. De tudo, ou de quase tudo! «Desculpe, Rosa! Não lhe deveria ter perguntado isso.»
«Não tem problema. Eu sinto-me um pouco constrangida em falar sobre o assunto. Tenho receio, que não entendam.»
«Que disparate Rosa, você conhece-me!»
Ela olhou-me e sorriu, mas senti-a pouco à vontade, o que não era habitual. Não conseguia entender, tentei pensar e enquadrá-la em várias situações, que fossem plausíveis de se encontrar. Até me passou pela cabeça que andasse com alguém que fosse casado, mas nada encaixava com Rosa.
«Sou lésbica! Vivo com uma mulher. A minha companheira é mais velha. É professora e conheci-a quando fui aluna dela. Foi amor à primeira vista. Damo-nos muito bem!»
Eu não sabia o que lhe dizer. Não tinha pensado nessa hipótese. Mas a Rosa foi tão genuína, e como sempre tão doce, no que disse, que achei perfeitamente normal, que fosse lésbica, como se tivesse sempre conhecido e lidado com pessoas que gostam de outras pessoas, independentemente do sexo, ou do que fazem na intimidade. Rosa era a mesma pessoa, continuava a ser a mesma pessoa, nada mudaria depois daí, a não ser uma maior cumplicidade e respeito mútuo.
«O senhor Fernando, um dia destes vai lá a casa jantar connosco e conhecer a Margarida!»
«Com todo o prazer, Rosa!»

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