quarta-feira, 18 de maio de 2011

A minha mãe anda triste. Ontem, vi-a chorar. O meu pai tenta meter conversa com ela, mas não reage, diga o que lhe disser. Uns dias antes do feriado de 5 de Outubro, discutiu com o meu pai. Eu já estava deitado, mas ouvia as vozes alteradas que soavam do quarto, mesmo com a porta fechada. Nunca tinha visto a minha mãe assim, nunca tinha imaginado que poderia haver alguma vez problemas entre eles. Pareciam-me tão unidos e felizes, como se tivessem nascido um para o outro. A minha mãe sempre tão compreensiva, o meu pai desfazendo-se em mil atenção e querendo sempre satisfazer as suas vontades e caprichos. Eram um casal feliz.
Consegui ouvir algumas frases, outras, não entendi. Há coisas que ainda não entendo, por que talvez nunca as tenha vivido. Mas ela disse-lhe que já não era a primeira vez que acontecia e que jamais lhe perdoaria. «Foste longe de mais!» Eu senti o peso das palavras proferidas por minha mãe, contrastando com o silêncio de meu pai, depois de ela lhe ter dito que não queria mais viver assim. Ouvia repetidamente o nome de uma mulher, como se ela também fizesse parte do problema, ou fosse o problema.
Gertrudes era secretária de meu pai, há alguns anos. Lembro-me de, quando terminei a primária, nessas férias, ter ido passar um dia ao escritório de meu pai e foi quando a conheci. Gostei muito dela. Era bonita, alta, magra, de cabelo liso, muito loiro, quase dourado, olhos de um azul nunca visto, calçava sapatos de salto alto, tinha uma camisa branca com muitos folhos, por debaixo de um casaco axadrezado em tons de azul, com uma saia justa também num tom azul, esquisito, a condizer. Foi simpatiquíssima para mim. A sua voz era tranquila, falava num tom baixo e suave. Ofereceu-me rebuçados, foi-me buscar folhas de papel, lápis, esferográficas, marcadores de diversas cores para que me entretece a desenhar e assim passar melhor o tempo. Depois de almoço trouxe-me um gelado da Olá. E passei sem dúvida um dia maravilhoso, tendo sido apaparicado de forma extrema, como nunca me lembro de ter sido, ainda hoje, desde que lá entrei, até sair com o meu pai ao fim da tarde.
A situação era grave. Senti naquele momento, que nada mais voltaria a ser como antes. Tudo iria mudar. E eu? O que me iria acontecer? A minha mãe falou em divórcio, disse-lhe que iria falar com um advogado. Eu fiquei aterrorizado. Estava tão habituado a eles, a vê-los todos os dias. A minha mãe a ajudar-me de manhã, a boa Celeste a preparar-me o pequeno-almoço e todas aquelas iguarias que me fazia. E o que iria acontecer à nossa Celeste? A minha mãe num destes dias disse-lhe que possivelmente iria prescindir dos seus serviços. Ela apercebendo-se do que se estava a passar lá em casa, desatou num pranto e foi a correr para o quarto. O meu pai chegava tarde, mas sempre antes de jantar, para que sentados à mesa conversássemos, enquanto comíamos, sobre o que nos tinha acontecido durante o dia. O meu pai enchia-me de perguntas sobre a escola e os trabalhos. Às vezes ainda me ajudava a resolver alguns problemas ou a tirar duvidas. Já não iria ter o meu pai para me auxiliar nos trabalhos de casa. 
«Este ano, ele fica ainda nesta escola, mas no próximo ano lectivo irei pô-lo num colégio interno.» Num colégio interno?! Como poderia a minha mãe ser capaz de me fazer isso? «Mas, ele é muito novo. Irá estranhar. Não tens de ir trabalhar. Eu dar-te-ei o suficiente, para que nada mude aqui em casa.» Quem conhece a minha mãe, sabe que ela é demasiado orgulhosa e justa, para receber seja o que for, de quem ela não goste ou lhe tenha feito o que nunca deveria.
Foi um ano bastante atribulado, aquele em que minha mãe descobriu que meu pai, já não gostava dela. Ele continuava a fazer-lhe juras de amor e a pedir-lhe constantemente desculpa, como se houvesse perdão que salvasse o casamento e ele quisesse permanecer naquela cómoda relação, antes de viver, iludido, o que seria, achava ele, a sua grande paixão.
O meu pai sempre foi muito responsável no trabalho e também em casa. Nunca nos faltou nada. Mas emocionalmente havia muitas fragilidades, que se escondiam, por detrás daquela persona, aparentemente tranquila e segura. Ele teve uma mãe dominadora. Minha avó tinha um grande domínio sobre ele. Escolheu também uma mulher de personalidade forte. Ela não demonstrava, mas dominava-o pelo silêncio, com frieza, quando era preciso. Ele gostava dela assim. Até que um dia resolveu libertar-se, achando que conseguiria ser livre, sem uma mãe poderosa ou uma mulher recta, demasiado protectora. Enganou-se. Mas era tarde de mais.
Para mim perdê-lo, também foi doloroso. Via a família como inabalável, segura, eterna, feliz…De repente tudo ruiu e eu ali, no meio de acusações e culpas, choros e inflexibilidade, mudanças e mais mudanças, do passado e do futuro… Perder um pai, ainda jovem é doloroso. Sabia que ele nunca mais voltaria. Minha mãe nunca o perdoou.
No ano lectivo seguinte, e achando eu, que ela se tinha esquecido do que dissera, enquanto discutia com o marido, o homem com quem casara pela igreja, tendo manifestado convictamente o consentimento diante de Deus e a assembleia presente, assim como ele, prometendo amá-la e respeitá-la, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até que a morte os separasse. Tantas vezes me mostraram as fotografias, bem organizadas em álbum, e descreveram ao pormenor quem nelas figurava e todas as peripécias inerentes a cada uma, que me sentia mais um dos convidados, que lá esteve, sem que ainda existisse, mesmo como projecto que fosse.
Mas não se esqueceu. Nunca me tocara no assunto. Fez todos os contactos e diligências, sem eu saber. Quando um dia cheguei a casa e me disse que precisaríamos de ter uma conversa, pressenti pelo tom da sua voz, que as novas seriam menos boas. Mas estava longe do que me esperava.
Perdi, ali, a minha infância, naquele momento! Não chorei. Não valeria de nada chorar. Ela precisava de estar só, para fazer o luto de meu pai. Eu sentia que a solidão era-lhe vital. Aceitei o meu destino. Abracei a nova família, uma frater família, no colégio interno e até hoje, nada mais me voltou a ser tão familiar.

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