quarta-feira, 18 de maio de 2011

Hoje, é quinta-feira. Há tourada! Irei ter a casa cheia. Sempre que dá tourada na televisão, os meus vizinhos, a convite de meu pai, e por que ele sabe que apreciam o espectáculo, são aficionados da festa brava, ou se fazem convidados, vêm até cá, e ficam até ao fim, quando aparece a bandeira portuguesa, ao vento, e toca o hino nacional. São sempre noites muito animadas. O mesmo acontece com os jogos de futebol. Que algazarra; goooooooolo! Eu não gosto de touradas, nem de futebol, mas fico contente de os ver e ouvir comentar e discutir. Não há cadeiras que cheguem. Sempre alinhadas, na casa de jantar, como se fosse uma plateia de cinema, em frente à mágica caixinha.
Em outros dias, aparecem as mulheres, atraídas por outro tipo de programa, fazem do serão um convívio mais sereno e pacato, intercalando, os comentários às indumentárias dos artistas que vão desfilando e cantando, ao longo da noite, as Melodias de Sempre, ou ao enredo e representação nas Noites de Teatro, com as novidades que acontecem na minha rua.
Eu fico quase sempre calado. Por vezes, entendo que pela maneira como contam certos assuntos à minha mãe, utilizando palavras que desconheço, ou falando por meias palavras, é para que eu, não as perceba, nem saiba de quem estão criticando. Mas há sempre alguém que se descai, e logo cai o sigilo e todo o esforço para encobrir a dignidade de quem não está presente, ou poderá ser má referência, principalmente para mim, que sou ainda criança.
Os meus pais logo que apareceu a televisão, compraram um aparelho e como aqui à volta, poucas pessoas ainda o não têm, ou vão para o café do tio Tóino, ou para a Sociedade Recreativa, aqui da terra, ou para casa dos que já o adquiriram, como nós.
A Celeste está sempre a mandar-me para a cama.
«Vá, menino, já são horas!»
Eu peço sempre para ficar mais um pouco, aproveitando-me do que está a dar, para que a minha presença se prolongue até ao fim da canção, ao intervalo, à recolha do toiro… Sei lá! O que for! Olho para a minha mãe, que fica normalmente até mais tarde, enquanto o meu pai se deita, logo cedo, como que lhe pedindo que me deixe ficar um pouco mais e diga alguma coisa à Celeste, para que me deixe de vez de importunar. Mas ela, nem olha para mim, para não se deixar seduzir pelo meu olhar triste e manipulador.
Eu gosto mesmo de ver televisão. Se pudesse estava a toda a hora em frente ao ecrã.
O meu pai no outro dia esteve-me a explicar como funciona. Às vezes interrogo-me, como é possível estar tudo ali dentro!
O meu pai disse-me que funciona a partir da análise e conversão da luz e do som em ondas electromagnéticas e de sua reconversão em um aparelho. No outro dia, esteve cá em casa um senhor, que veio arranjar; substituir válvulas. Ele abriu por trás, o aparelho e fiquei surpreendido com o que vi. Não imaginava que tantos fios, as ditas válvulas, e outras peças, estivessem ali, com um aspecto estranho, nada romântico, como o da imagem e de tudo o que se vê. Já não se pode viver sem televisão. Começou a fazer riscos e a não se ouvir. Ainda pensei que fosse uma avaria da Rádio Televisão Portuguesa, mas não havia meio de aparecer o “Pedimos desculpa por esta interrupção. O programa segue dentro de momentos”. E não estava a conseguir ver o “Carrossel Mágico”. Chamei o meu pai. Ele disse-me logo que havia uma avaria e que se teria de chamar o técnico.
A televisão é como um vício, mesmo que não esteja a dar nada de jeito, estamos ali fixados no ecrã, a ver o que acontece para além de nossa casa. Até gosto de ver a publicidade, os reclames; algumas das minhas vizinhas só usam os detergentes que passam na tv. E vêm frequentemente elogiar e dizer à minha mãe que optaram por este ou por aquele, como se pelo facto de ser anunciado na televisão fosse já uma garantia de qualidade. Os brinquedos, adoro ver! Queria tê-los todos. Já nem sempre o que me oferecem, tem em mim impacto, se não for do mesmo modelo que dá na televisão. O meu pai comprou-me um carro telecomandado. Era mesmo aquele que queria! Mas depois ao utilizá-lo, achei-o banal, não fazia o mesmo que o outro, que vi no anúncio. «Óh, filho, o carro é o mesmo, mas filmam-no de forma, que pareça mais surpreendente, aos olhos dos meninos que o vêem!» Alguns dos meus amigos, com menos posses, em que por muito que peçam aos pais, eles não têm dinheiro para lhes oferecer brinquedos tão caros, pedem-me que os deixe brincar com os meus. Às vezes penso que não deveriam fazer aquela publicidade toda aos carros, às bonecas, aos jogos… Muitos dos meus amigos e pelo facto de os pais não os poderem comprar ficam tristes e sentem mais depressa a realidade dos que podem e dos que pouco ou nada têm. Se eu mandasse proibia que se fizessem anúncios a brinquedos!
A minha vizinha Beatriz tem o casamento da filha à porta. Ela no outro dia esteve cá em casa a ver as notícias sobre a viagem da rainha Isabel de Inglaterra, a Portugal. Estava sempre a chamar a minha mãe para observar os vestidos e pedir-lhe opiniões sobre o modelo que deveria copiar para vestir a filha e ela, para o casório. «Ai, vizinha que lindo este! Ai, o vestido daquela que está ao pé do Presidente Craveiro Lopes, é lindo, ficava-me mesmo bem, um assim!» E não parava de cobiçar a roupa de todas aquelas mulheres que apareciam na recepção à monarca inglesa e até começou a repetir, como se fosse um papagaio, algumas palavras estrangeiras; madame, merci, bonjour…
«Óh, vizinha Beatriz, não ligue a isso! A sua filha não é nenhuma princesa. Faça-lhe um vestido simples, que lhe fique bem. Tanto a vizinha, como ela são para o forte, aquelas são todas elegantíssimas!»
Levou muito a mal o que a minha mãe lhe disse e nem nos convidou para o casamento. Segundo as más-línguas, viu numa Crónica Feminina, já antiga, a fotografia do vestido de casamento de Grace Kelly e foi assim que a filha se casou, feita uma princesa da nossa rua.
O senhor presidente do concelho, aparece todos os dias no Tele Jornal. As minhas vizinhas elogiam-no muito, dizem que é um distinto homem. Que fez muito pela nossa Pátria. Eu não tenho muita paciência para ouvir os seus discursos enfadonhos, apesar de até gostar dele. Tem ar de ser boa pessoa, de gostar de crianças. Mas elas babam-se todas a ouvi-lo. A Dona Aurora, disse-me em segredo, que não gostava dele, era a única, que era um ditador e que tudo aquilo não passava de propaganda do Estado Novo, utilizando a televisão para manipular o povo. Ela era contra a Guerra do Ultramar; era uma chacina. Enquanto ele, o grande pai, salientava nos seus longos e moralistas discursos o dever dos portugueses em defender a Pátria, a Nação Portuguesa, fosse aqui, ou nas Colónias Ultramarinas.
A dona Aurora ensinou-me ver o mundo de outra maneira e a não me deixar influenciar pelas aparências, a ter um sentido critico mais apurado. Por que a televisão só passa o que o regime deixa, o que possa afectar a estabilidade política/social é logo sujeito a censura. A televisão é um excelente meio de comunicação, informação, mas devemo-nos distanciar o suficiente, para que nos beneficie, nos instrua, informe, mas nunca afectados por irrealidades, o sonho que a televisão pretende mostrar. 

Sem comentários:

Enviar um comentário