quarta-feira, 18 de maio de 2011

Penso. Esforço-me por me lembrar. Não é fácil ir ao início de mim e encontrar, para além de datas, que possam ter sido porventura significativas, erguendo, assim no tempo, uma história, tudo o que de importante vivi e que marcos influenciaram, sim, o meu crescer.
Vinte e tês de Fevereiro de mil novecentos e cinquenta e três. É esta a data, que consta na certidão de nascimento. Quando terei nascido aproximadamente um mês antes. Consta que a foi a vinte e três de Janeiro que mergulhei neste mundo e tive de começar, esta caminhada de ser humano; primeiro dependendo, depois, aprendendo, trabalhando, a ser independente e a inter-depender, a amar. Há cinquenta e sete anos que cresço. Todos os dias estou maior. Às vezes, acho-me ainda pequeno, quando olho à minha volta e para cima, e para trás, e para todos… Não que haja muita gente crescida, antes fosse eu pequeno, por tanta beleza que me envolvesse e por haver pessoas capazes de me esmagar por tamanhas virtudes. Olho o mundo e vejo-o cinzento e pobre, enfeitado por tecnologias, preenchido de tanto entretenimento, fácil de comunicar e percorrer, onde impera todos os dias a novidade, descobertas, mais informação, ofertas, a modernidade que se impõe ao que se persiste conservar… Esta é a minha idade, a do mundo cinzento.
Apesar de querer vencer pelo optimismo, mas escasseia o brilho nos olhos de tantos que por mim se cruzam. E apesar de tentar ser feliz e crescer todos os dias, e vencer os obstáculos, que me nascem no caminho, deparo-me com a minha maior fraqueza, os que se atrasam e não conseguem (sobre) viver e a meu lado se tentam segurar, quando já estão caídos, e sem rumo. E há os outros que ainda dificultam mais estes pobres infelizes, e sentem uma enorme satisfação, por sobre a sua desgraça terem algum poder, para que se sintam assim importantes e menos miseráveis, e gente.
E todos (sobre)vivemos, sem saber viver, viciados num amanhã que não existe. Por que o hoje, também não nos sobeja.
Tenho a idade do mundo cinzento, mas talvez para o ano, tenha a da primavera, e tudo recomece, para mim e para os que amo ou se deixem amar. E tenhamos a ambição de sermos todos grandes e bem crescidos para a idade do mundo e do Homem.
Fui para a escola aos seis anos e estive aproximadamente entre os catorze e os dezanove num colégio interno, depois entrei na faculdade. Depois arranjei o meu primeiro emprego. Mais tarde, abri uma sapataria. E outra, depois de trespassar a primeira. Ao deixar o negócio de sapatos, abri outra empresa; um franching de uma marca francesa. Estive por fim numa empresa de construção civil.
Não me é fácil lembrar de tudo.
Fiz muitos amigos. Em algumas situações incompatibilizei-me. Mas apesar de ter a idade do mundo cinzento, acredito na idade da primavera.


Hoje, faço doze anos! Finalmente, tenho doze anos! Todos os anos fico muito contente por ser mais velho.
A minha mãe vai fazer-me uma festa. Já convidei todos os meus amigos, colegas de escola. Os meus vizinhos também vêm. A minha mãe, ontem, falou com a tia Maria e a D. Adelaide. Elas também lhe disseram que tinham muito gosto em estar presentes.
Ontem, todo o dia estiveram fechadas na cozinha. A Celeste é uma óptima cozinheira e doceira. Só não gosto quando ela confecciona peixe. Principalmente peixe cozido. Mas, tanto a minha mãe, como ela dizem que tenho que comer peixe e legumes, muitos legumes; a cenoura faz bem aos olhos, em vez de me deliciar somente com as estaladiças batatas fritas, que também ela, com tanto carinho, faz, para o seu menino, e a tenra hambúrguer, com ovo a cavalo. Também não gosto de sopa. A minha mãe e o meu pai estão sempre a elogiar as sopas da Celeste. Ela, apesar de eu já ter doze anos, feitos hoje, ainda me dá a sopa à boca. Ainda, há poucos dias, me obrigou a comer tudo, a bem do meu crescimento e da minha saúde. Eu fico sempre muito zangado, esperando solidariedade de meus pais, perante tal humilhação, mas eles nunca dão importância às minhas contestações, nem lhe retiram a autoridade, que tem sobre mim, em assuntos de alimentação e relacionados com o meu quarto; exige que o tenha sempre arrumado e seja eu a fazer a cama.
O arroz-doce está delicioso. Já o provei. A minha mãe, depois de o distribuírem por diversos pratos de vidro, coloridos, que só são usados, quando alguém cá de casa faz anos, ou são festejadas outras datas importantes, chamou-me para que rapasse o tacho. A Celeste generosamente deixou bastante arroz pegado ao fundo e salpicou-o, antes que comesse, ainda quente, com muita canela, como eu gosto.
Pão-de-ló, pudim-mentiroso, uma especialidade de família, sempre que é feito, a minha mãe, cuidadosamente procura no livro de receitas, já velhinho, ainda escrito pela mão da avó Irene, e segue religiosamente as quantidades, para que o resultado final, também, faça recordar outras festas. Como se matasse as saudades de sempre, do tempo perdido. Mousse de chocolate, gelatinas, salada de frutas…
Na cozinha e em cima dos móveis da casa de jantar já não cabe mais nada.
O pão já está cortado, mas a Celeste, só um pouco antes de os convidados chegarem, é que, coloca o fiambre, o queijo e o paio, para que as sandes estejam apetecíveis também aos olhos e sejam as primeiras a marchar. E que seja um lanche ajantarado e se prolongue pela noite.
Hoje, vou-me deitar mais tarde. Sempre que há festa, tenho autorização para me deitar um pouco depois da hora habitual e partilhar do convívio com os mais velhos, depois de os pais dos meus amigos os virem buscar.
«Fernando, vem cá! Precisamos de ti! Vai ali, à quinta da tia Maria e traz limões, para fazer limonada.»
A tia Maria vive sozinha, numa casa perdida numa grande quinta. Ficara viúva, mas não perdera o alento para trabalhar e tratar daquele grandioso pomar, apesar de ter sempre pessoal, sazonalmente, para dar vida à terra ou fazer as colheitas.
«Vai e não te demores. A tia Maria ligou-me e disse-me que o Manel, já tinha enchido dois sacos com limões.»
Antes de sair, gosto sempre de me olhar ao espelho e de me ver. A Minha mãe como sabe deste meu apreço em me admirar antes de bater com a porta, faz sempre questão de me espreitar para de seguida me chamar de vaidoso.
«És bonito, sim! Mas não percas tempo, aí especado, ao espelho, que o gastas! Vai, mas é buscar o que te pedi!»
Eu costumo brincar com os meus amigos na quinta da tia Maria. Ela gosta que a visite e leve outros miúdos da minha rua, comigo, ou colegas de turma. Sente-se acompanhada e gosta de nos ver correr, subir às árvores e fazer de todo aquele terreno, uma pátria de brincadeiras.
Do outro lado da minha rua, mora o João. Ele é mais novo do que eu. Temos uma diferença grande de idades. O pai dele nasceu na mesma terra da minha mãe, no Alentejo. Ele tem somente sete anos. Está ainda na escola primária. Eu já estou no ciclo preparatório, e tenho doze anos! Gosto dele! É simpático, mas é um puto. Não tenho, já muita paciência, para certas brincadeiras e da atenção que ele de mim requer.
«João, logo vais à minha festa?»
«Sim, vou! A minha mãe deixa-me ir e até já comprou um presente, para logo te oferecer. Ela, também lá vai, depois de dar o jantar ao meu pai.»
«O que tens na mão, João?»
«É a minha prenda! Fui eu que a fiz! Com arame e elástico. Queres ver como funciona?»
«Ai! Ai! Acertaste-me!»
O que é que me fez o João?! Ai, como me dói! Não consigo tirar a mão da cara, tenho qualquer coisa, no olho.
«Pára de me pedir desculpa e vai chamar a minha mãe!»
Ouvindo os meus gritos e a minha aflição, a minha mãe acode-me desorientada e surpreendida, com o que estava a acontecer.
«Celeste, telefona para o senhor e diz-lhe que vá ter comigo e com o menino ao hospital que eu vou já andando.»
«Mas o que foi, minha senhora?»
«Faz o que te digo!»
Hoje, faço quarenta anos! Já há alguns anos que desisti de festejar o dia do meu aniversário. Lembro-me sempre do acidente que tive quando era pequeno. Perdi-lhe o gosto. Sinto-me sempre angustiado, e sem querer, vem-me sempre à memória tudo o que aconteceu naquele fatídico dia. Mas hoje, convenceram-me a celebrá-lo! Sinto, não sei por quê vontade de o fazer. Talvez tenha a ver com a idade; quarenta anos! O tempo passa depressa. E não me sinto assim tão acabado. Quando era jovem e deparava-me com pessoas com esta idade, achava-as velhas, mais prontas para bater as botas, do que eu agora, que ainda sinto ter uma vida, ou duas, pela frente.
Há algum tempo, que venho a amadurecer a ideia. A minha mãe, constantemente me fala, que este ano é que é, tenho de fazer uma grande festa e convidar a família, os amigos, alguns colegas de trabalho… Preocupa-se muito com o meu bem-estar. Quer sempre recompensar-me de alguma coisa, que ela ache que me falta, que não me deu, ou possivelmente por algum sentimento de culpa, o que não deveria ter feito ou dito, sem importância, mas que na ideia dela se tem vindo a tornar, cada vez mais evidente, assim como a sua fragilidade psíquica e física… Desde que a Celeste nos deixara, ela assumiu mais o papel de mãe, já depois de ter regressado do colégio, e tornou-se um pouco obsessiva, na protecção e com os meus problemas, a minha vida. Eu tento percebê-la e por a conhecer tão bem, evito contar-lhe tudo, para que ela não se preocupe de mais. Por vezes quer ajudar, mas complica. Não é exagero, mas talvez há dois anos, que me anda a pressionar, para que eu festeje os meus quarenta anos. É uma meta, ou uma desculpa. E eu talvez por tanto a ouvir, que me sinto conformado e sinceramente até com alguma vontade de os celebrar.
Tinha pensado em viajar por esta altura. Ir sozinho dar um grande passeio. Ainda não conheço Itália. É um país que tenho vontade de um dia, ainda ir. Gosto do som das palavras, dito, por aquela gente do sul, de Nápoles, também da pronúncia dos romanos, do Vaticano, Miguel Ângelo, Pizza, Veneza, Pompeia… Tanta coisa que gostaria de visitar! ...
Quando pensei marcar a viagem disse-lhe, ao de leve, que tinha intenção de viajar, mas ela concordando, não me deixou terminar, com receio que, o que lhe viesse a dizer sobre o passeio, coincidisse, com a altura do meu aniversário, tendo logo arrematado com uma frase que frequente e espontaneamente lhe sai: «Que feliz ideia, meu filho!», acrescentando que me ofereceria as passagem, como presente do quadragésimo ano de vida, mas que lhe teria de dar a alegria de, neste ano, fazer uma grande festa. E eu, incapaz de a esmorecer, acabei por concordar e sentir a enorme alegria que lhe saía pelos olhos e como era bonito o seu sorriso, de tão contente, e tudo se transformou num apertado e prolongado abraço, com muitos beijinhos pelo meio. Na verdade, não fui somente eu a nascer, mas também ela a dar à luz. E mais do que um jantar, um bolo com velas, é haver motivo para juntar tanta gente que de nós gosta tanto, e nos têm acompanhado ao longo destes quarenta anos, e vivido connosco, alguns, mesmo à distância, acontecimentos e situações, também os menos agradáveis.
Quarenta anos! Sempre a crescer e à procura do caminho. O meu caminho. Um caminho solitário, mas não egoísta, julgo eu. Tento ser coerente na minha conduta. Ser credível, sem que me preocupe muito com o olhar dos outros. Só de alguns, por que nem todos destes, sei quem são. Não sou perfeito, mas tento-me melhorar todos os dias e não entrar em contradição comigo mesmo. Procuro ser exemplar, organizado, pontual, justo, honesto, correcto, ter capacidade de diálogo, aceitar os outros como são e a vida como se mostra, nem sempre bela, (talvez por minha culpa) … Ser concreto! …
Mas se procuro ser, é por que ainda não sou. Como animal racional, cabe-me fazer escolhas, saber distinguir o bem do mal. Nem sempre reconheço o mal como mal e o bem como o melhor. Nem sempre sei o que sou, ou se sou aquilo que pretendo ser. Mas caberá aos outros avaliar a minha conduta, nesta caminhada de quarenta anos! Também me (re)vejo nos outros e tento não acreditar demasiado nas minhas convicções, assim como em todos os que teimam no que se afirmam e como o fazem. Nem sempre agimos de acordo com o que dizemos; somos muito tolerantes, mas na primeira oportunidade, instintivamente reagimos, concordamos sobre a importância do trabalho em equipe, mas por insegurança ou medo, recolhemo-nos às tarefas solitárias, achamos que temos capacidade para amar, viver em partilha, mas acabamos por investir pouco, culpabilizar o(s) outro(s), fazermo-nos passar por  vitimas e convencidos, incapazes de olhar para dentro, que os relacionamentos que faliram, foi por culpa do(s) parceiro(s). Tendo ser coerente; agir de acordo com o que prego! Tento!
Tomei então, de uma forma partilhada a decisão livre e autónoma de celebrar o meu aniversário. Só se festeja uma vez por ano o nascimento, mas eu tenho a pretensão de renascer sempre que me é pedido e posso.
Onde andas tu? Deixa-te de divagações! O que é que te deu, agora?! Lá por que fazes quarenta anos! Cai à terra e vai mas é ajudar a tua querida mãezinha, seu palerma.
«Filho, onde estás? Vem cá!»
E lá vou eu para a cozinha! Logo, ao jantar já estou morto!
«Sim, mãe, vou já!»
 Ela já planeou a ementa. Os doces como sempre são muitos, sem esquecer o pudim-mentiroso e o arroz-doce. Não tenho mão para pratos muito elaborados, mas safo-me como ajudante, tanto a preparar os alimentos, sob as suas ordem, como a lavar a muita loiça que suja. Mas divirto-me sempre muito, mesmo quando a vejo enervada, pelo resultado final das iguarias, não corresponder ao por que por si fora idealizado e tento sempre de imediato, convencê-la, de que o sabor conta mais do que o aspecto, mas sem nunca conseguir.
«O teu pai já te ligou a dar os parabéns?»
«Sim, mãe! Como sempre o pai liga-me, neste dia para me perguntar como estou e dizer que gosta muito de mim, tem muitas saudades, se lembra muito, todos os dias, que eu existo e conte muitos e bons… Eu agradeço e respondo-lhe, dizendo, que também gosto muito, penso muito, todos os dias, e que ele veja, ou comunique, e um até para o ano!»
«Mas ele, também te tem ligado pelo Natal?!»
«Sim, mãe, também! Sempre!»
Ontem, discuti com o engenheiro da obra! Eu entendo que ande sobre tensão e que não seja fácil lidar com tanta gente, conseguir que façam exactamente o que quer, com o rigor que exige, com a perfeição que pretende, e atingir os timings certos, para conclusão dos trabalhos, de acordo com os contratos estabelecidos. Mas, não posso admitir que ele descarregue as frustrações e o mau feitio em cima de mim. Não tenho culpa, que não se saiba impor, ter autoridade sobre o pessoal que coordena. Eu cumpro! Tento sempre, que posso, fazer o que me compete e por vezes até colaboro no que não faz parte do meu serviço e competências, saindo muitas vezes fora de horas, sem que tenha alguma recompensa e reconhecimento por isso, por parte, seja de quem for. E depois ainda levo estes desaforos. Por vezes pergunto-me se estou a proceder bem, em não me limitar, somente às minhas tarefas e se estarei ou não a beneficiar o patronato e a prejudicar os outros trabalhadores, com as minhas cedências e excesso de zelo.
Desde que entrei, aqui, nesta firma de construção civil, que me tenho esforçado por aprender e conseguir corresponder às expectativas. Não tem sido fácil! Nunca trabalhei por conta de outrem, ou se alguma vez o fiz, foi numa fase transitória, logo que saí da escola e por pouco tempo, que nem me lembro.
Materiais de construção não são o meu forte, apesar de gostar de trabalhos de bricolage. Entretenho-me sempre que é necessário a fazer pequenos arranjos ou na reorganização e melhoramento do espaço que me acolhe todos os dias e onde também vive a minha mãe. Há dois anos, no verão estive a pintar a casa. Detesto pintar tectos. E quem gosta?
Mas aprendi depressa. Não havia tempo para não aprender de outra maneira. Tudo aqui acontece, quase em simultâneo; os telefones que tocam, o fax para enviar, ir ao correio, abrir a correspondência, contactar empreiteiros, outros construtores, fornecedores, contabilizar saídas e entradas de material, ir à obra quando é necessário, desenvolver estratégias de vendas, ir à gráfica ver os folhetos, relativos às casas que estão para venda, marcar e ter reuniões com as imobiliárias, mostrar os andares, as vivendas, as garagens aos interessados compradores, marcar escrituras e tratar de toda a documentação, sem de nada me esquecer, para que elas se realizem, etc, etc, etc… Irra, não pára!
Tenho direito a um mês de férias, mas nunca as gozo quando quero. Quando penso que estou de partida, para sair deste desassossego e ter uns diazinhos à beira praia, com tranquilidade; essencialmente dormir, dormir até tarde. Não! Não posso ir! Ligam-me e inventam mil trabalhos com urgência, como se as minhas férias não fossem muito mais urgentes. Dão-me subsídio de alimentação, tenho um carro da empresa, para me deslocar, que uso também ao fim-de-semana; dou os meus passeios, e até já o levei para férias, também tenho direito a umas quantas senhas de gasolina… Mas já não está a dar.
Ontem, despediu o Zé Grande. O homem fartou-se de chorar e de lhe pedir mil desculpas. Mas na verdade ele já o tinha perdoado n vezes. O Zé é um excelente trabalhador, mas quando bebe, deixa de fazer o seu trabalho, para se converter num mau operário, destabilizador e mau dizente. Ele já o tinha avisado, que um dia o faria. E tinha-o proibido de beber. Mas logo pela manhã, antes das oito, tomava de um golo só, a primeira aguardente antes de entrar na obra, ali mesmo ao pé, na taberna da Ti Chica. Mas, pior era depois de almoço, em que não só se encharcava em mais de um litro de vinho tinto, daquele bem carrascão, como depois bebia com o café, mais dois ou três digestivos, para acabar com a festa e começar com o inferno.
O Zé não faz mal a uma mosca e tem a cargo uma grande família; uma mulher doente, que já foi operada a um peito e que se safou, depois de muita radioterapia, tratamentos…, cinco filhos; tendo o mais velho, quinze anos e a mais nova, não ainda três. Talvez por isto tudo ele se sinta desgostoso e impotente e se entregue à bebida, para melhor levar os dias; a mulher, doente, sem trabalho, filhos para criar e dar educação… E abuse da boa vontade e tolerância dos que se têm condoído com a sua pouca sorte e miséria. Ele possivelmente acharia que fizesse o que fizesse, teriam sempre pena dele e que o valorizariam pelo seu profissionalismo nos períodos de sobriedade, já raros.
O engenheiro disse-lhe que não voltaria a trás e que ele se fosse queixar onde quisesse, que desta vez é que era e por justa causa e com direito a processo disciplinar.
O engenheiro é complicado de lidar e quando lhe salta a tampa é difícil calá-lo, tirar-lhe a razão, mesmo que não a tenha. Eu deixo-o sempre a falar com as paredes, quando não há forma de estabelecer um diálogo que beneficie o que se pretende concretamente realizar de acordo com o trabalho e os objectivos. Ele não é exemplo, para ninguém! Tem a teoria, mas falha-lhe a prática. Sabe exigir e dar ordem, mas nem sempre há saber e lógica no que diz e a sua teimosia leva-o, a não só, ser indesejado, como ridicularizado, até por um comum trolha, que não tendo estudos, tem o saber de uma vida dura, tirado sob chuva e frio, ou à torreira do sol, durante anos e anos. «Engenheiro, engenheiro! Tem a mania que sabe tudo, só por que tem um canudo! Meta-o o cu!»
A minha discussão foi acesa. Desta vez não o deixei a falar sozinho e disse-lhe também o que dele pensava, como profissional. Se eu tinha deveres, ele também os tinha e se eu era cumpridor dos meus, ele também, que se responsabilizasse por o que acontecia sobre a sua alçada e não atirasse as culpas a, mais ninguém.
Ele como responsável pela obra, deveria estar presente desde o início dos trabalhos, a fim de orientar e de canalizar o pessoal para as tarefas prioritárias, e discutir com os mestres empreiteiros, a melhor maneira de as realizar, sem ter o rei na barriga e achar que a sua visão é sempre a mais lúcida, até saírem todos os funcionários e fechar o estaleiro. Mas nem sempre isso acontece. Chega tarde. É o primeiro a sair para almoçar. Chega depois de almoço, a más horas e nem sempre o sentimos estimulado para a realidade do momento. Depois, é o que se vê; desorganização, o pessoal parado, sem tomar a iniciativa, por que depende das ordem do chefe, e por vezes fazendo-o de propósito, assim como o desaparecimento de materiais e de ferramentas.
Eu, vou frequentemente à obra, mas o meu serviço, é mais no escritório, estabelecendo contactos e resolvendo assuntos com fornecedores e também de pessoal… Eu procuro não ultrapassar os poderes inerente às funções que exerço e limito-me quando necessário a pedir autorização a quem, hierarquicamente dependo. No entanto não admito que se metam no meu serviço e venham atirar postas de pescada, e ensinar-me a trabalhar. 
O patrão diz que a construção vai de mal a pior. E eu acredito. Acredito e sei. Os papéis passam-me pelas mãos. Mas também me sinto prejudicado, e terei de falar outra vez com ele, por causa do meu salário. Com a desculpa de que os tempos não são os melhores e há que fazer sacrifícios, não tem havido aumentos salariais. E também não pagam horas extraordinárias. Eu não saio à hora, fico sempre mais um pouco, por que me sinto na obrigação de deixar tudo em ordem para o dia seguinte, mas também já não me excedo muito, para chegar tarde a casa. Durante o horário estabelecido eu trabalho; dou o litro. Ele terá que rever a minha situação e aumentar-me o salário. Tudo está difícil, mas as despesas pessoais dos administradores aumentaram; aquisição de carros, de segunda habitação, viagens para o estrangeiro, mais plafon para cartões de crédito, senhas de gasolina, despesas de representação…E eu e os restantes empregados é que devemos ter sentido de responsabilidade e espírito de sacrifício, para que haja trabalho e a empresa perdure. Tenho que ter uma conversa séria e tentar que este ano, ele me aumente, pois o que me paga já não está a dar para que tenha uma vida, não digo desafogada, digna.
A minha mãe anda triste. Ontem, vi-a chorar. O meu pai tenta meter conversa com ela, mas não reage, diga o que lhe disser. Uns dias antes do feriado de 5 de Outubro, discutiu com o meu pai. Eu já estava deitado, mas ouvia as vozes alteradas que soavam do quarto, mesmo com a porta fechada. Nunca tinha visto a minha mãe assim, nunca tinha imaginado que poderia haver alguma vez problemas entre eles. Pareciam-me tão unidos e felizes, como se tivessem nascido um para o outro. A minha mãe sempre tão compreensiva, o meu pai desfazendo-se em mil atenção e querendo sempre satisfazer as suas vontades e caprichos. Eram um casal feliz.
Consegui ouvir algumas frases, outras, não entendi. Há coisas que ainda não entendo, por que talvez nunca as tenha vivido. Mas ela disse-lhe que já não era a primeira vez que acontecia e que jamais lhe perdoaria. «Foste longe de mais!» Eu senti o peso das palavras proferidas por minha mãe, contrastando com o silêncio de meu pai, depois de ela lhe ter dito que não queria mais viver assim. Ouvia repetidamente o nome de uma mulher, como se ela também fizesse parte do problema, ou fosse o problema.
Gertrudes era secretária de meu pai, há alguns anos. Lembro-me de, quando terminei a primária, nessas férias, ter ido passar um dia ao escritório de meu pai e foi quando a conheci. Gostei muito dela. Era bonita, alta, magra, de cabelo liso, muito loiro, quase dourado, olhos de um azul nunca visto, calçava sapatos de salto alto, tinha uma camisa branca com muitos folhos, por debaixo de um casaco axadrezado em tons de azul, com uma saia justa também num tom azul, esquisito, a condizer. Foi simpatiquíssima para mim. A sua voz era tranquila, falava num tom baixo e suave. Ofereceu-me rebuçados, foi-me buscar folhas de papel, lápis, esferográficas, marcadores de diversas cores para que me entretece a desenhar e assim passar melhor o tempo. Depois de almoço trouxe-me um gelado da Olá. E passei sem dúvida um dia maravilhoso, tendo sido apaparicado de forma extrema, como nunca me lembro de ter sido, ainda hoje, desde que lá entrei, até sair com o meu pai ao fim da tarde.
A situação era grave. Senti naquele momento, que nada mais voltaria a ser como antes. Tudo iria mudar. E eu? O que me iria acontecer? A minha mãe falou em divórcio, disse-lhe que iria falar com um advogado. Eu fiquei aterrorizado. Estava tão habituado a eles, a vê-los todos os dias. A minha mãe a ajudar-me de manhã, a boa Celeste a preparar-me o pequeno-almoço e todas aquelas iguarias que me fazia. E o que iria acontecer à nossa Celeste? A minha mãe num destes dias disse-lhe que possivelmente iria prescindir dos seus serviços. Ela apercebendo-se do que se estava a passar lá em casa, desatou num pranto e foi a correr para o quarto. O meu pai chegava tarde, mas sempre antes de jantar, para que sentados à mesa conversássemos, enquanto comíamos, sobre o que nos tinha acontecido durante o dia. O meu pai enchia-me de perguntas sobre a escola e os trabalhos. Às vezes ainda me ajudava a resolver alguns problemas ou a tirar duvidas. Já não iria ter o meu pai para me auxiliar nos trabalhos de casa. 
«Este ano, ele fica ainda nesta escola, mas no próximo ano lectivo irei pô-lo num colégio interno.» Num colégio interno?! Como poderia a minha mãe ser capaz de me fazer isso? «Mas, ele é muito novo. Irá estranhar. Não tens de ir trabalhar. Eu dar-te-ei o suficiente, para que nada mude aqui em casa.» Quem conhece a minha mãe, sabe que ela é demasiado orgulhosa e justa, para receber seja o que for, de quem ela não goste ou lhe tenha feito o que nunca deveria.
Foi um ano bastante atribulado, aquele em que minha mãe descobriu que meu pai, já não gostava dela. Ele continuava a fazer-lhe juras de amor e a pedir-lhe constantemente desculpa, como se houvesse perdão que salvasse o casamento e ele quisesse permanecer naquela cómoda relação, antes de viver, iludido, o que seria, achava ele, a sua grande paixão.
O meu pai sempre foi muito responsável no trabalho e também em casa. Nunca nos faltou nada. Mas emocionalmente havia muitas fragilidades, que se escondiam, por detrás daquela persona, aparentemente tranquila e segura. Ele teve uma mãe dominadora. Minha avó tinha um grande domínio sobre ele. Escolheu também uma mulher de personalidade forte. Ela não demonstrava, mas dominava-o pelo silêncio, com frieza, quando era preciso. Ele gostava dela assim. Até que um dia resolveu libertar-se, achando que conseguiria ser livre, sem uma mãe poderosa ou uma mulher recta, demasiado protectora. Enganou-se. Mas era tarde de mais.
Para mim perdê-lo, também foi doloroso. Via a família como inabalável, segura, eterna, feliz…De repente tudo ruiu e eu ali, no meio de acusações e culpas, choros e inflexibilidade, mudanças e mais mudanças, do passado e do futuro… Perder um pai, ainda jovem é doloroso. Sabia que ele nunca mais voltaria. Minha mãe nunca o perdoou.
No ano lectivo seguinte, e achando eu, que ela se tinha esquecido do que dissera, enquanto discutia com o marido, o homem com quem casara pela igreja, tendo manifestado convictamente o consentimento diante de Deus e a assembleia presente, assim como ele, prometendo amá-la e respeitá-la, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até que a morte os separasse. Tantas vezes me mostraram as fotografias, bem organizadas em álbum, e descreveram ao pormenor quem nelas figurava e todas as peripécias inerentes a cada uma, que me sentia mais um dos convidados, que lá esteve, sem que ainda existisse, mesmo como projecto que fosse.
Mas não se esqueceu. Nunca me tocara no assunto. Fez todos os contactos e diligências, sem eu saber. Quando um dia cheguei a casa e me disse que precisaríamos de ter uma conversa, pressenti pelo tom da sua voz, que as novas seriam menos boas. Mas estava longe do que me esperava.
Perdi, ali, a minha infância, naquele momento! Não chorei. Não valeria de nada chorar. Ela precisava de estar só, para fazer o luto de meu pai. Eu sentia que a solidão era-lhe vital. Aceitei o meu destino. Abracei a nova família, uma frater família, no colégio interno e até hoje, nada mais me voltou a ser tão familiar.
Os sapatos foram a minha vida nestes últimos anos. Primeiro a Chambellini, no Amoreiras Shopping Center, depois na rua do Carmo. O negócio estava mal. Antes havia poucas sapatarias e poucos centros comerciais, agora abrem aos molhos, como se tivéssemos população e dinheiro para tanta oferta.
Mudei de ramo. Ainda não domino este novo negócio, mas como tenho dois sócios, vou ajudado por eles, aprendendo, adaptando-me, evoluindo…
Alex, depois de uma viagem a Paris, veio com uma ideia nova, de trazer para Portugal a representação da Astroflash. A Astroflash é um software de astrologia, em que introduzindo os respectivos dados de nascimento, é impresso um mapa astral, o perfil psico-astrológico, etc, etc. Eu não entendo nada, nem de astrologia, nem de informática.
«Não precisas de saber nem de astrologia, nem de informática. O Jacinto será nosso sócio, também. E só terás de ligar, entrar no programa e saber introduzir os dados e desligar o computador. Logo aprenderás!» O Jacinto é um amigo comum. Ele tirou um curso de astrologia e domina bem a matéria, daí o Alex tê-lo convidado para entrar na sociedade.
Informática, não é, nunca foi, e acredito que nunca será o meu forte. As crianças hoje, nascem ensinadas, têm uma facilidade em lidar com aparelhos, computadores, vídeo jogos… Eu nunca, fui dado a essas modernices, à ciência da computação. No entanto, as novas gerações, hoje, olham para um computador pessoal, como se ele sempre tivesse existido, os da minha geração e também alguns da, de meus pais, como se fosse já imprescindível, sem que consigam passar um dia, sem o seu pc, quando somente há cerca de quarenta anos é que surgiu o primeiro computador pessoal, o Kenbak-1. E foi durante a 2ª Guerra Mundial que nasceram realmente os computadores, que deram origem aos actuais. Lembro-me de ter visto um documentário na televisão sobre o gigante electromagnético Mark I, construído nos USA, pela United States Navy, em conjunto com a Universidade de Harvard e a IBM. Um monstro, que ocupava 120 m3, tinha milhares de relés e fazia uma barulheira ensurdecedora. O Department Of The Army, também desenvolveu o seu computador, que usava apenas válvulas, para os ajudar a calcular as trajectórias de mísseis, com a precisão necessária para dar cabo dos Alemães e terminar mais depressa com aquela maldita guerra. Curioso que ainda hoje, as crianças alimentem o seu instinto e se divirtam, viciadas, grande parte, a jogos de guerra, os chamados vídeo jogos, tão populares entre os mais novos e alguns adultos que tiveram mais dificuldade em crescer.
Agora, tenho de aprender, mas está a ser-me difícil. Claro, que ligar o computador, abrir o programa, introduzir a password, depois os dados de nascimento, lidar com a impressora…, não foi difícil. Mas, qualquer outro problema, que surja, já não me é tão fácil e tenho sempre de pedir ajuda ou chamar um técnico. Os vírus! O anti-vírus que tinha, não era, suficientemente, potente, para destruir um malandro de um desses “bichos” que não sei como, entrou dentro do computador e começou a aniquilar todos os programas instalados. O problema foi tão grave que achámos melhor substituir o computador. A impressora, também estava sempre a dar problemas. Comprámos uma toda xpto, que imprimia muitas páginas por minuto, para que a freguesia, os consulentes, tivessem o mapa e os textos, sem terem de esperar muito, mas o papel por vezes encravava, estava sempre a encravar, depois deixava de trabalhar, de reconhecer o programa e de obedecer à ordem de imprimir. Lá pedíamos a um dos funcionários de uma loja vizinha, que vendia pc, impressoras, toners, material informático …, para nos ajudar a resolver tais anomalias, nem sempre visíveis e ultrapassáveis, para mim, ou qualquer comum mortal, como eu, que olhava para aquelas máquinas como objectos, não voadores, mas identificados como estranhíssimos.
A astrologia é interessante. Motiva-me mais. Sempre que posso pego num livro e leio. Já compreendo melhor o que é a astrologia. Antes, sabia muito pouco ou nada de signos. Hoje, entendo a mecânica celeste, os planetas do Sistema Solar. Na verdade são eles que nos influenciam e não os signos do Zodíaco. Quando uma pessoa fala que é de um determinado signo, significa que tem o Sol nesse signo, pelo facto de ter nascido num determinado dia. O Sol muda de signo por volta de vinte e um, vinte e dois, de cada mês. Já sei consultar as efemérides, ver onde se encontram em trânsito, os planetas… Claro, que ainda continuo a saber pouco, mas o suficiente para responder às questões postas pelos clientes, quando o Jacinto não se encontra na loja.
Continuo num centro comercial; Amoreiras. O horário que se tem de cumprir, perante a administração do centro e que faz parte do contrato, leva uma rotatividade de turnos e de pessoal, nem sempre fácil de gerir.
Agora temos uma nova funcionária. A primeira era interessada, e exercia bem as suas funções, mas como estava desempregada, antes de vir trabalhar connosco, esteve aqui até arranjar um emprego melhor; que ganhasse mais e tivesse fim-de-semana, para gozar. E lá foi. Esta, a Teresa é estudante de astrologia e domina minimamente informática.
O Jacinto é o mais castigado, por que é constantemente solicitado para dar explicações sobre os temas de nascimento. A Teresa também sabe, mas preferem que seja o astrólogo a falar-lhes. Normalmente sou eu que abro a loja. O Jacinto vem mais tarde, por volta das onze. Às quatro, cinco horas saio e ele fica até fechar, com a funcionária. Ao fim-de-semana, alternamos. Uma equipa “fixe”!


A semana passada foi admitida para trabalhar no escritório, uma nova administrativa. Nasceu em Angola. É mulata. Uma mulata bonita. Tem ainda vinte e cinco anos. Está a estudar à noite e de dia trabalha, para ajudar a família e ter alguma independência. Hoje, estive a conversar com ela. Ainda não tínhamos tido oportunidade de falar, sem ser sobre trabalho. Esteve-me a contar um pouco do seu percurso de vida e as razões que a levaram a escolher Portugal para viver. Ela confessou-me que este país é óptimo, que não há muita descriminação e que se sente muito bem, cá. Tem um sorriso encantador; dentes alinhados e brancos, tão brancos, que lhe perguntei, se tinha feito algo, para os ter assim, ao que me respondeu, prontamente que não. «São mesmo, assim. Tive sempre os meus dentes, assim, desde que me lembro! Nós, os negros costumamos tê-los brancos e saudáveis!» 
Ao contar à minha mãe, sobre a nova funcionária e de a ter descrito, com algum entusiasmo, ela logo me questionou sobre a sua vida afectiva. «Oh, mãe, sei lá! Mas, por que pergunta?» Eu entendi o propósito da sua curiosidade, mas fiz-me desentendido. «Vê lá, se te encantas pela rapariga e ainda me dás netos pretos!» Eu já pressentia que me iria dizer algo assim, disparatado. «Oh, mãe! Mas agora é racista?! A mãe é tão religiosa, vai à missa e tem uma saída destas!» Eu sabia que lhe dizendo o que lhe disse, lhe tocaria na ferida. «Eu, racista?! Mas não gostaria de ter netos de cor!»
A discussão tornou-se acesa, como se eu e a Rosa, estivéssemos comprometidíssimos e de data marcada para o casório, quando mal a conheço. Acabámos por, cada um, ir para seu quarto, para pôr termo aquele conflituoso debate sem conclusões. Estava tão incomodado que só consegui adormecer, era quase manhã. A minha mãe racista e acusando-me de também o ser; desde pequeno que temia os ciganos.
Não me lembrava de ter medo de ciganos, ou de fazer alguma rejeição fosse a que raça fosse. Mas era verdade. Não sei bem por quê. Talvez, por desde pequeno sentir o preconceito dos que me eram familiares e, ou conhecidos, e de ouvir muitas histórias sobre os ciganos. O cuidado que deveria ter se os visse por perto, não me fossem levar dentro de um saco e nunca mais veria nem pais, nem vizinhos e jamais voltaria a casa.
Possivelmente serei racista, ou terei certamente bebido de pequeno, preconceitos e sido manipulado, por protecção, pelo medo.
O racismo será uma questão instintiva ou cultural? A cultura serve o instinto. Todas as espécies têm o instinto maior de se preservarem e de se darem continuidade. A natureza é inteligente. Logo que não tenhamos condições, sejamos suficientemente robustos, para nos cruzarmos, procriarmos, envelheceremos e assim nos finamos, para que outros mais capazes surjam e consigam os objectivos exigidos pela continuidade e equilíbrio do todo. Os progenitores defendem as suas crias dos predadores de outras espécies ou da mesma. Mas por outro lado tentam sobreviver e alimentar os recém-nascidos, matando a vida, (seja de que reino for) até eles serem capazes de se submeterem sozinhos às leis da selva.
O Homo Sapiens no seu percurso evolutivo, tentou sempre defender o seu núcleo mais próximo, os seus descendentes, como prova do seu grande contributo para a “tribo”. Seria sempre mais fácil sobreviver em grupo, do que isoladamente; caçar, defenderem-se de outros animais mais fortes, agressivos, carnívoros, ou de outros em que também funcionasse o instinto de amparo para com os seus filhotes e sentindo-se ameaçados, atacassem sem olhar a quem, desenvolver actividades em grupo, estipulando funções, de acordo com o género ou características…
Mas o racismo cultural é utópico! Pretender ser o melhor, o mais puro, superior é regredir, estagnar. Chegámos ao que somos, por que nos cruzámos, multiplicámos, descendemos, não sei de quê, mas desde que há vida, em nós, há certamente um gene dessa memória. A cor, o tamanho, o género, as características fisiológicas…, são pormenores visíveis, insignificantes, de acordo com a história milenar que transportamos e a outros passaremos, para que haja continuidade, evolução e vida.
O mundo divide-se cada vez mais. As pessoas têm de se afirmar como as melhores; no mundo do trabalho a competitividade leva-as a esquecer certos valores, para friamente e sem pudor, corresponderem ao que lhes foi proposto, atingirem metas, nem sempre alcançáveis. As mais belas; todos os dias somos bombardeados com publicidade, em que os modelos são sempre novos e formosos. Parece que já não há lugar, para os velhos, como se um dia, todos não o fossemos, os deficientes, como se tivéssemos nascidos perfeitos, outras crenças, como se tivéssemos a certeza do que somos, onde estamos e quem nos criou…
A minha mãe tem alguma razão em me chamar de preconceituoso e de racista, só por que temo os ciganos. Há em mim algo que me faz querer sentir superior, para superar quiçá, o medo que tenho, e que neles projecte esta minha insegurança, sem dela, no dia-a-dia, me aperceber.
Acredito numa raça pura; a da alma humana!
«Bom dia! Dona Albertina dê-me um café, se faz favor.»
«O senhor Fernando quer em chávena fria, e curto?»
«Em chávena fria. E normal. O Jornal?»
«O de hoje está na mesa, ao fundo! Ai, senhor Fernando, só desgraças! Eu já não quero ler mais notícias!»
A dona Albertina pergunta-me todas as manhãs a mesma coisa, se o café é em chávena fria e se o quero curto. E peço-lhe sempre que me tire não muito curto; normal, sem ser uma banheira, e em chávena fria. E refere-se sempre às desgraças do mundo, publicadas no jornal matutino, que entregam no seu café. Tem razão quando se refere às desgraças e a tanta notícia má, como se não houvesse nada de bom para publicar.
Sem duvida que a comunicação social é um reflexo do grande mal-estar da nossa sociedade contemporânea, obrigando-nos, pelo exagero, com que destacam e incidem sobre, as notícias, a tomar uma consciência maior, sobre a realidade e as diferenças abismais entre os países desenvolvidos e os pobres, sobre actos violentos, desde conflitos étnicos ou raciais, em bairros específicos, de uma determinada cidade, como atentados terroristas onde morrem pessoas inocentes, que nada têm a ver com os ideais fundamentalistas e que só querem trabalhar e (sobre)viver.  As injustiças laborais, os graves problemas económicos, ambientais, o petróleo, a taxa de natalidade, a saúde, pedofilia… Até à promoção de produtos e valores, objectos de consumo, como se eles fossem capazes de nos compensar e de amenizar os sintomas do grande mal-estar da nossa civilização.
«Já leu, sobre esse grande acidente na A1 norte? Morreram nove pessoas!»
«Já li, sim!»
«A semana passada houve um outro acidente, com emigrantes e morreram todos. O carro caiu por uma ribanceira! Só desgraças! Eu fico tão nervosa com essas notícias!»
«E tem razão para ficar! Os jornais, a televisão, exageram nas notícias. Somos bombardeados constantemente, com informação de acontecimentos nefastos, ou pela banalidade. Por isso, hoje tanta gente sofre de depressão, stress, síndrome do pânico, anorexia, bulimia… Há uma tendência para banalizar o que é trágico, a violência, a perversão…, tudo o que de mau acontece nos diversos cantos da Terra, em cada bairro ou rua. É necessário informar sobre o que acontece no mundo, mas o que é de facto importante, significativo e não o que é menor e nada temos a ver sobre o assunto; o marido que matou o amante da mulher, a senhora que foi atropelada, o assalto ao banco… Viu, dona Albertina no outro dia estiveram toda a tarde, em directo a dar o assalto a um banco em Setúbal?»
«É verdade, senhor Fernando! Não precisávamos de saber tanto!»
«Depois é o bando de negros, que são contra os ciganos, os assaltos efectuados por gangs de emigrantes vindos dos países de leste, as brasileiras que trabalham nos bares de alterne, os debates sobre o casamento gay… Já não posso com todas estas notícias!
Há por aí, muitos Orson Welles, mas sem criatividade alguma!»
«O que quer dizer com isso, senhor Fernando?»
«Orson Welles?! Orson Welles foi um famoso locutor, que mais tarde esteve também ligado ao cinema, que produziu uma transmissão radiofónica em directo, sobre a Guerra dos Mundos. Nem imagina o pânico que causou nos ouvintes que estavam naquele momento sintonizados com aquela estação de rádio! Uma invasão de extra-terrestres; marcianos que invadiam Londres e que aniquilavam os humanos. A dramatização radiofónica foi perfeita, em tom jornalístico, foi um sucesso mundial! Orson Welles nunca imaginou que a adaptação que fizera da obra homónima de Herbert George Wells, tivesse aquele impacto.
Aqui, também criam o pânico, ao divulgarem notícias não sobre o que é real, concreto, havendo imparcialidade, mas uma emotividade doentia, dando largas à imaginação, realçando sempre o lado negativo, do que virá, do que acontecerá; das diversas probabilidades escolhem sempre a que causa mais impacto, sobre quem ouve, vê, ou lê. Lembra-se D. Albertina, da doença das Vacas Loucas? De repente ninguém queria comer carne de vaca! Depois a Gripe das Aves! Sim, devem informar! Mas, é um exagero como tentam passar a mensagem.
Precisamos de gente nova, com ideias diferentes, que pensem pela sua cabeça, capazes de estar à frente de um jornal, de uma estação de televisão, suficientemente conscientes do seu papel na sociedade, que estimulem os jornalistas a dar notícias importantes, reais, que tenham a ver com o colectivo, com o que de significativo acontece no mundo e aqui. Mas, não! Andam à procura do que é fácil e se uma agência noticiosa divulga que há um incêndio numa casa já velha, numa zona histórica de uma qualquer cidade, e que morreram umas quantas pessoas…
Lá vão todos! Os directos! Todos os canais ao mesmo tempo, falam exaustivamente no mesmo assunto; e por que fez e aconteceu, e se isto e por aquilo…, dias e dias. O mesmo acontece com os jornais. As primeiras páginas, abordam os mesmos assuntos, só mudam as fotografias e os títulos das manchetes. Não haverá notícias mais importantes a dar?! Mas para que existe uma entidade reguladora, para a comunicação social, se a imprensa está entregue, concentrada, é pertença de grandes grupos económicos? O dinheiro, hoje, vence tudo! O povo só gostará de telenovelas? Passam umas atrás das outras, em quase todos os canais em hora nobre. Já não há programas de música, a não ser os de conquista de novos talentos, torná-los famosos, criar-lhes ilusões e de seguida, atirá-los para o desemprego, fazê-los sentir o país que temos e o quanto é difícil viver sendo artista, já não se educa! … A dona Albertina é que faz bem, não lê esse tipo de notícias!»
«Mas, depois vêm-me contar! Mas vejo sempre as novelas, não tenho outro entretenimento. Ai, gosto muito, senhor Fernando!»
Catarina tem agora oitenta e poucos anos. Não sei ao certo, apesar de ela estar sempre a relembrar-me a idade que tem, para que lhe diga que está longe de aparentar a velhice e quando não me repito em tais elogios, ela faz sempre questão de me inquirir se não acho que está muito bem para os bastantes anos que cá dura. Sem dúvida que ninguém lhe dá aquela idade. É viúva, já há alguns anos. Vitorino era o nome do seu querido e amado marido. «Lembra-se do meu querido marido, o Serrotinho? Era tão bem disposto, tão meu amigo, tenho tantas saudades dele. Era outro filho que eu tinha». Vitorino era um bom vizinho. Preocupava-se comigo, assim como ela. Quando a minha mãe se ausentava e ia passar algum tempo em casa da minha madrinha, eles faziam questão de saber se precisava de alguma coisa e levavam-me, mesmo que eu não quisesse, o almoço e o jantar, com direito a uma sobremesa especial, confeccionada de propósito para mim. Mimavam-me muito.
Catarina e Vitorino Serrote tiveram dois filhos. São um pouco mais velhos do que eu. Quando viemos morar para este bairro, eles ainda estavam com os pais, mas logo depois, cada um partiu para a sua vida; casaram, tiveram filhos. Um é médico e o mais novo engenheiro, para orgulho de seus pais. E o seu Serrotinho era mais um filho que Catarina adoptou, um homem crescido, com espírito de criança, sempre pronto para brincar, dizer graças, ajudar a vizinhança, amigo da boa pinga e de petiscos, que Catarina tão bem fazia e sempre disposta aos prazeres do seu querido e de ter a casa cheia, sem nunca o querer contrariar e sendo uma excelente anfitriã. Ela cuidava dele como se fosse o seu menino mais velho, e nele era nítido o apreço que tinha por ela, o carinho que sentia por aquela mãe, a mãe que nunca tivera, pois a perdera ainda criança, o amor e a dedicação que demonstrava, quando ela estava doente, com gripe, ou com outra maleita qualquer.
No início de cada mês, lá iam, os dois a Lisboa, receber as rendas, das casas que Catarina herdara dos pais. Apesar de não ser nenhuma fortuna, mas vinham sempre muito contentes, mais por terem feito a viagem e encontrado pessoas amigos, vizinhos antigos e com eles, posto a conversa em dia e matado saudades, do que propriamente com a importância que receberam dos inquilinos. Depois de Vitorino ter falecido, era eu que a levava de carro. Não que alguma vez, me tivesse pedido, mas eu sentia que o deveria fazer, e ela aceitava de bom grado a minha disponibilidade, para no primeiro fim-de-semana de cada mês, a um sábado ou ao domingo à tarde, ir com ela até à capital, para cobrar as rendas, como se fosse um tesoureiro bem organizado, levando já dinheiro trocado, os recibos passados…
Catarina depois de ficar viúva, e só naquela casa, precisava mais de mim, do que nunca. E era hora de, sem obrigação e com boa vontade, lhe retribuir tudo o que ela e o seu defunto marido me proporcionaram nos bons e nos maus momentos; sempre disponíveis e desinteressadamente.
Arranjara um cão para se entreter e fazer-lhe companhia. Fora o filho que, uma tarde vindo visitá-la, lhe oferecera. Deram-lhe o nome de Quicky, de quick, que em inglês significa rápido. O cachorro tinha muita energia e mais parecia um foguete a fugir-lhe, quando ela o queria agarrar. Destruía-lhe as flores que ela plantava pacientemente no pequeno jardim que tinha à frente da casa. Não lhe dava descanso, nem lhe tinha qualquer respeito. Sempre que se via aflita, chamava-me para que fosse pôr ordem naquele desalvoro criado pelo Quicky e tentar fazer com que se acalmasse e tivesse sossegado. Dava-lhe uns gritos, de forma a assustá-lo e ele parava por instantes, mas logo recomeçava mal voltasse as costas. Ela ria-se. Acabava por lhe achar graça. Com o tempo veio a revelar-se um bom cão de companhia e de guarda, dando sempre sinal de quem se aproximava ao portão, ladrando exaustivamente, sem parar.
Catarina era uma católica praticante. Ia à missa sempre que podia e não faltava, quando era solicitada, às reuniões, antes do Natal, de um grupo de paroquianos, que se uniam, com o fim de cooperar e de propiciar uma melhor ceia e reconfortante noite, naquela quadra festiva, em que decretou a igreja ter nascido o Salvador, a pessoas carenciadas.
Ela pedia-me que também colaborasse. Não necessitava de ir às reuniões, se não pudesse, mas que no dia vinte e quatro fosse com ela e mais algumas senhoras, distribuir, de carro, fazendo de chauffer, e também de ajudante, os cabazes de Natal, sacos com roupa, às famílias mais necessitadas, elegidas, pelo grupo, de acordo com as suas necessidades.
Ela não falava de religião comigo. Sabia que eu era baptizado, que tinha tido uma edução católica, mas que, actualmente, e tendo admiração pela figura de Cristo, me identificava como agnóstico, e que não concordava com muito do que se passava na Igreja Católica Apostólica Romana. Mas também sabia que independentemente de crenças ou divergências, tudo que se relacionasse, com a ajuda ao próximo, o resto passaria para segundo plano.
Um ano pela Páscoa, andámos a distribuir ovos de chocolate. Tinha uma lista, com o nome das crianças e as respectivas moradas. Houve uma em que não dávamos com a casa. Mas perguntando acabámos por lá chegar e tê-la à porta, ansiosa à nossa espera. «Pensava que se tinham esquecido de mim!»
Por outra altura, veio ter comigo e falou-me de uma senhora amiga dela, que estava muito doente e precisava urgentemente de uma transfusão de sangue. Eu ofereci-me.
«Não, Fernando! Não podes ser tu.»
«Por quê, se eu já dei sangue?»
«Eu sei! Mas a minha amiga é do grupo sanguíneo O e só pode receber de um dador, que seja também O. Fala com os teus amigos ou colegas de trabalho, e se houver alguém que tenha esse tipo de sangue, que…»
«Sim! Vou procurar!»
Liguei para várias pessoas, até que encontrei, quem fizesse a dádiva benévola de sangue, nesse mesmo dia, com as características exigidas. Mas quando fomos ao hospital, para o meu amigo dar sangue, fomos surpreendidos pela dona Catarina, lavada em lágrimas, chorando a morte de uma amiga querida, que não aguentara e não fora suficientemente forte, para lutar contra a doença, que tão injustamente a levara, assim soluçando me falava Catarina, daquela doce senhora, que eu também conhecera, e que era uma das voluntárias do grupo da igreja.