quarta-feira, 18 de maio de 2011

Catarina tem agora oitenta e poucos anos. Não sei ao certo, apesar de ela estar sempre a relembrar-me a idade que tem, para que lhe diga que está longe de aparentar a velhice e quando não me repito em tais elogios, ela faz sempre questão de me inquirir se não acho que está muito bem para os bastantes anos que cá dura. Sem dúvida que ninguém lhe dá aquela idade. É viúva, já há alguns anos. Vitorino era o nome do seu querido e amado marido. «Lembra-se do meu querido marido, o Serrotinho? Era tão bem disposto, tão meu amigo, tenho tantas saudades dele. Era outro filho que eu tinha». Vitorino era um bom vizinho. Preocupava-se comigo, assim como ela. Quando a minha mãe se ausentava e ia passar algum tempo em casa da minha madrinha, eles faziam questão de saber se precisava de alguma coisa e levavam-me, mesmo que eu não quisesse, o almoço e o jantar, com direito a uma sobremesa especial, confeccionada de propósito para mim. Mimavam-me muito.
Catarina e Vitorino Serrote tiveram dois filhos. São um pouco mais velhos do que eu. Quando viemos morar para este bairro, eles ainda estavam com os pais, mas logo depois, cada um partiu para a sua vida; casaram, tiveram filhos. Um é médico e o mais novo engenheiro, para orgulho de seus pais. E o seu Serrotinho era mais um filho que Catarina adoptou, um homem crescido, com espírito de criança, sempre pronto para brincar, dizer graças, ajudar a vizinhança, amigo da boa pinga e de petiscos, que Catarina tão bem fazia e sempre disposta aos prazeres do seu querido e de ter a casa cheia, sem nunca o querer contrariar e sendo uma excelente anfitriã. Ela cuidava dele como se fosse o seu menino mais velho, e nele era nítido o apreço que tinha por ela, o carinho que sentia por aquela mãe, a mãe que nunca tivera, pois a perdera ainda criança, o amor e a dedicação que demonstrava, quando ela estava doente, com gripe, ou com outra maleita qualquer.
No início de cada mês, lá iam, os dois a Lisboa, receber as rendas, das casas que Catarina herdara dos pais. Apesar de não ser nenhuma fortuna, mas vinham sempre muito contentes, mais por terem feito a viagem e encontrado pessoas amigos, vizinhos antigos e com eles, posto a conversa em dia e matado saudades, do que propriamente com a importância que receberam dos inquilinos. Depois de Vitorino ter falecido, era eu que a levava de carro. Não que alguma vez, me tivesse pedido, mas eu sentia que o deveria fazer, e ela aceitava de bom grado a minha disponibilidade, para no primeiro fim-de-semana de cada mês, a um sábado ou ao domingo à tarde, ir com ela até à capital, para cobrar as rendas, como se fosse um tesoureiro bem organizado, levando já dinheiro trocado, os recibos passados…
Catarina depois de ficar viúva, e só naquela casa, precisava mais de mim, do que nunca. E era hora de, sem obrigação e com boa vontade, lhe retribuir tudo o que ela e o seu defunto marido me proporcionaram nos bons e nos maus momentos; sempre disponíveis e desinteressadamente.
Arranjara um cão para se entreter e fazer-lhe companhia. Fora o filho que, uma tarde vindo visitá-la, lhe oferecera. Deram-lhe o nome de Quicky, de quick, que em inglês significa rápido. O cachorro tinha muita energia e mais parecia um foguete a fugir-lhe, quando ela o queria agarrar. Destruía-lhe as flores que ela plantava pacientemente no pequeno jardim que tinha à frente da casa. Não lhe dava descanso, nem lhe tinha qualquer respeito. Sempre que se via aflita, chamava-me para que fosse pôr ordem naquele desalvoro criado pelo Quicky e tentar fazer com que se acalmasse e tivesse sossegado. Dava-lhe uns gritos, de forma a assustá-lo e ele parava por instantes, mas logo recomeçava mal voltasse as costas. Ela ria-se. Acabava por lhe achar graça. Com o tempo veio a revelar-se um bom cão de companhia e de guarda, dando sempre sinal de quem se aproximava ao portão, ladrando exaustivamente, sem parar.
Catarina era uma católica praticante. Ia à missa sempre que podia e não faltava, quando era solicitada, às reuniões, antes do Natal, de um grupo de paroquianos, que se uniam, com o fim de cooperar e de propiciar uma melhor ceia e reconfortante noite, naquela quadra festiva, em que decretou a igreja ter nascido o Salvador, a pessoas carenciadas.
Ela pedia-me que também colaborasse. Não necessitava de ir às reuniões, se não pudesse, mas que no dia vinte e quatro fosse com ela e mais algumas senhoras, distribuir, de carro, fazendo de chauffer, e também de ajudante, os cabazes de Natal, sacos com roupa, às famílias mais necessitadas, elegidas, pelo grupo, de acordo com as suas necessidades.
Ela não falava de religião comigo. Sabia que eu era baptizado, que tinha tido uma edução católica, mas que, actualmente, e tendo admiração pela figura de Cristo, me identificava como agnóstico, e que não concordava com muito do que se passava na Igreja Católica Apostólica Romana. Mas também sabia que independentemente de crenças ou divergências, tudo que se relacionasse, com a ajuda ao próximo, o resto passaria para segundo plano.
Um ano pela Páscoa, andámos a distribuir ovos de chocolate. Tinha uma lista, com o nome das crianças e as respectivas moradas. Houve uma em que não dávamos com a casa. Mas perguntando acabámos por lá chegar e tê-la à porta, ansiosa à nossa espera. «Pensava que se tinham esquecido de mim!»
Por outra altura, veio ter comigo e falou-me de uma senhora amiga dela, que estava muito doente e precisava urgentemente de uma transfusão de sangue. Eu ofereci-me.
«Não, Fernando! Não podes ser tu.»
«Por quê, se eu já dei sangue?»
«Eu sei! Mas a minha amiga é do grupo sanguíneo O e só pode receber de um dador, que seja também O. Fala com os teus amigos ou colegas de trabalho, e se houver alguém que tenha esse tipo de sangue, que…»
«Sim! Vou procurar!»
Liguei para várias pessoas, até que encontrei, quem fizesse a dádiva benévola de sangue, nesse mesmo dia, com as características exigidas. Mas quando fomos ao hospital, para o meu amigo dar sangue, fomos surpreendidos pela dona Catarina, lavada em lágrimas, chorando a morte de uma amiga querida, que não aguentara e não fora suficientemente forte, para lutar contra a doença, que tão injustamente a levara, assim soluçando me falava Catarina, daquela doce senhora, que eu também conhecera, e que era uma das voluntárias do grupo da igreja.

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